sábado, 19 de julho de 2008

Texto para análise - Religião e cultura cívica: onde os caminhos se cruzam?

A experiência eclesial/ástica contribui para o posicionamento e assunção de valores e práticas democráticas? A discussão aqui feita evitou responder de forma categórica a esta questão, que talvez esteja por demais imbuída de uma desconfiança quanto à capacidade da fé ou da igreja orientarem as pessoas positivamente em relação ao mundo. Dizer que sim obviamente abriria o flanco para inúmeras qualificações ou objeções de quantas pessoas e grupos rejeitam ou simplesmente não se deixam seduzir pela participação política ativa. Dizer que não seria passar por alto de todo um "fervilhamento" em curso nas igrejas brasileiras em função da questão da participação política. Mas não é preciso dar respostas categóricas quando se lida com a complexidade de um domínio em que interagem elementos diversos e heterogêneos entre si. Não somente isto, não é possível responder de forma direta à questão acima, se partirmos de uma compreensão da democracia como modo de instituição do social e não como mero regime político. Neste caso, os processos de democratização incidem sobre uma pluralidade de dimensões, segundo ritmos e agendas diversas. Os avanços em uma área não correspondem automaticamente aos de outra, as modalidades da prática democrática também variam; o ritmo da democratização e a natureza da sua agenda são descontínuos através da superfície do social. Nem tudo é descompasso, porém. Há algo que "resta" em cada situação, conectando-a à democracia. Este algo é simultaneamente forma e conteúdo, mas não um único, a se distribuir por igual em cada caso. Ora prevalece o aspecto da igualdade de condições, ora o da liberdade de pensamento, expressão, organização; ora destaca-se a ênfase nos procedimentos, ora na satisfação de demandas dos excluídos por justiça substantiva; ora prevalece a diferenciação de esferas (como a fronteira entre público e privado, estado e igreja, política e religião), ora assomam ideais comunitários de um bem substantivo. Por outro lado, é possível que "atitudes" democráticas situadas entre estes polos convivam com "atitudes" ambivalentes em outros; ou que práticas democráticas se associem a elementos autoritários ou intolerantes ao transitarem de um espaço social para outro. Terceira possibilidade: a partir do campo da religião podem provir experimentos ou concepções de democracia que não se apliquem ao conjunto da sociedade ou mesmo à dimensão politico-institucional da democracia. Utilizamos um recurso que, simulando o procedimento tradicional dos estudos de cultura política, firmava-se em outro entendimento de suas implicações. Procuramos, assim, pelos efeitos políticos das motivações religiosas, pela tradução de valores religiosos em valores ou práticas políticos. Mas ao invés de enquadrar a discussão num entendimento psicológico e individualista de motivação e de valores, compreendemos a ambos enquanto situados num sistema relacional de significação - em que as experiências com outros grupos religiosos ou outros atores não-religiosos e a interação com dinâmicas mais gerais do processo histórico na sociedade brasileira condicionaram e alteraram o sentido "original" do vocabulário religioso e, por outro lado, as tentativas de produzirem um deslocamento do campo religioso em termos simultaneamente eclesiais (entendimento da fé e da missão e estrutura da igreja) e sociais (luta pela democratização radical da sociedade) produziram efeitos sobre a democratização e as concepções de democracia de diversos atores religiosos e não-religiosos. A discussão procurou ainda apontar que há lutas pelo sentido da religião e da democracia no campo religioso, que se expressaram a partir das tradições evangélica ou católica e também no interior destas. A maneira como esse campo se estrutura para lidar com estas questões pode indicar sua participação no processo de democratização. No âmbito dos valores, duas conclusões a meu ver importantes e relacionadas, poderiam ser tiradas: a primeira é de que, pelos padrões das pesquisas sobre cultura política, os atores religiosos não apresentam razões para preocupações quanto a serem um provável "foco" de posturas anti-democráticas. Eles se mantêm consistentemente "na média" de tudo o que se sabe sobre a cultura democrática no país. Em segundo lugar, e ainda usando os mesmos padrões, isto quer dizer que, de um lado, a variável religião não desequilibra a balança da cultura política no sentido de colocar obstáculos ao avanço da democracia em outras áreas da vida social e política, e, de outro lado, a adesão religiosa é irrelevante - como já havia observado Moisés (1995:242-50) - para configurar alguma tendência ou correlação estatística quanto a um maior ou menor impulso democratizante. No entanto, como cultura política não é, neste trabalho, um conceito adstrito à esfera político-institucional, e como democracia não designa um processo homogêneo e centrado num determinado lugar do social (por exemplo, o estado), esta dupla conclusão precisa ser pesadamente qualificada. Em primeiro lugar, observamos que a vivência religiosa efetivamente exerce motivações ou provê um "treinamento" que se revelará bastante relevante quando as pessoas deixam o umbral do campo religioso e procuram traduzir seu compromisso comunitário através da participação político-eleitoral ou da militância social. No âmbito das motivações, a "politização da fé" nem sempre visa a modificar o sentido desta a partir da vivência mundana, mas pode tentar levar para outras regiões do social formas de saber e práticas informadas religiosamente - sob a forma da "evangelização", do "testemunho" ou de um projeto de "poder religioso" (ainda quando "democrático" e vazado em intenções "sociais"). No âmbito das práticas eclesiais, há aspectos cotidianos delas que representam contribuições democratizantes da vivência religiosa para as pessoas que daí despertam para a ação coletiva (social ou política em sentido estrito). Não somente isto, mas também se dão embates nesta área - em torno de processos de tomada de decisão intra-eclesiástica, do conteúdo do "ensino social" da igreja, da articulação entre a liturgia e a pregação e uma concepção de vida religiosa politicamente ativa no mundo - que atualizam o sentido de democratização e ampliam as "tarefas" da disseminação deste modo de instituição social para além da política institucional ou da esfera dita secular. Relações de autoridade, concepção do lugar do leigo na vida da igreja, articulação entre igreja e política, noções de participação e representação são elementos que estão igualmente presentes no campo religioso e em relação aos quais pode-se falar que emerge uma cultura política "religiosa", a qual interage permanente, mas nem sempre diretamente, com a cultura política "secular". Assim, a insignificância estatística parece estabelecida, em condições nas quais questões centrais à visão religiosa dos fiéis ou das instituições eclesiásticas não estejam sendo objeto de disputa política. Se o recorte quantitativo capta o lado "estático" dos valores, um enfoque conjuntural pode captar oscilações significativas da cultura política dos atores religiosos, que os projetem como interlocutores relevantes do debate público (a especificar quais e de que maneira). O enfoque qualitativo que utilizamos permite ainda indicar como os valores "propriamente" democráticos se transfiguram ao passar de um domínio a outro do social, encontrando-se aí com um vocabulário próprio e exigências de "negociação" de sentidos para vigorar efetivamente.
Fonte: Conclusões de debate promovido pela Fundação Joaquim Nabuco

Nenhum comentário: